“Sempre sobra tempo porque não consigo me dedicar a uma única atividade em tempo integral”, responde o hematologista do Hospital da Fundação Hemope do Recife (PE), Kleber Matias, quando perguntado como consegue conciliar a carreira de médico com a literatura e a gestão de um dos melhores restaurantes de gastronomia italiana do Recife, o Othello Bistrô. “Outras atividades além da medicina me abriram portas para um novo mundo.” A paixão por literatura, por exemplo, surgiu precocemente, “tanto para ler quanto para escrever”, redigia crônicas e as enviava para os jornais de sua cidade para serem publicadas.
Mais tarde, o escritor descobriu seu fascínio pelas histórias do sertão e por meio de crônicas, biografias e canções retratava a alma e a cultura do povo nordestino. A curiosidade sobre a trajetória de seu primeiro personagem surgiu após assistir “O Cangaceiro”, clássico do cinema brasileiro.
Premiado pelo Festival Internacional de Cannes, o longa-metragem de 1953, dirigido por Lima Barreto, conquistou os troféus de melhor filme de aventura e menção especial pela trilha sonora com a música “Mulher Rendeira”. A composição atribuída a Virgulino Ferreira, o Lampião, inquietou o hematologista. “Achei a música diferente e resolvi procurar saber quem era o autor.” Alfredo Ricardo do Nascimento, ou melhor, Zé do Norte, compositor, poeta, folclorista e escritor paraibano de Cajazeiras foi quem compôs a canção “olê muié rendeira, olê muié rendá, tu me ensina a
fazê renda, que eu te ensino a namorá”, era o homem que Matias procurava.
Canções como “Lua Bonita”, “Sodade do meu bem, sodade” e “Meu Pião” marcaram época e ganharam repercussão internacional nas vozes de personalidades da Música Popular Brasileira como Caetano Veloso, Vanja Orico, Nana Caymmi, Maria Bethânia e Geraldo Azevedo, mas infelizmente, como grande parte de suas composições não são catalogadas frequentemente, seu nome não é associado a elas.
Caetano Veloso, por exemplo, em seu disco “Transa” de 1972, cita versos do Zé do Norte na canção “It´s a long way”, mas não atribui a ele os créditos da música no disco e nem em seu site oficial.
Em busca de “justiça cultural”, o médico decidiu iniciar uma minuciosa pesquisa sobre a vida e obra de Zé do Norte. Segundo o escritor, a contribuição do compositor à cultura nordestina não deve ser esquecida. “Vi que havia pouquíssima informação sobre ele e isso me estimulou a procurar saber mais, tive muita dificuldade em pesquisar sua vida, não havia material nos acervos culturais de Cajazeiras e nem em nenhuma outra cidade do Estado.” Após dois anos deintensa investigação, Matias lançou sua primeira obra, a biografia “Um tal de Zé do Norte”, que destaca os desafios e injustiças vividas pelo personagem ao longo de sua vida, durante a 6ª Bienal Internacional do Livro, no Centro de Convenções de Pernambuco.
A escolha do personagem de seu segundo livro também aconteceu por acaso, quando soube dos boatos de canonização do Padre Cícero, o médico Romão Batista inquietou-se mais uma vez, não entendeu porque a mesma igreja que o excomungou queria torná-lo santo. Matias acredita que
exista um fundo comercial nessa decisão, pois o povo brasileiro, principalmente o nordestino, adora Padre Cícero. Para o escritor, a igreja católica está preocupada com a perda de fieis. “Antes que eles
queiram voltar atrás, eu quis escrever um livro contando a história de Padre Cícero da maneira que eu vejo.” Segundo Matias “Santo Capitalista” poderia ser o título de seu próximo livro, pois reflete bem sua opinião sobre o padre. “Santo não gosta de dinheiro, eles são muito desprendidos.”
Conhecido como “cearense do século”, Padre Cícero foi o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte e o maior latifundiário do Ceará. O lançamento da obra está previsto para este ano, durante a comemoração do centenário de Juazeiro do Norte, a famosa “terra do Padre Cícero”.
Como uma coisa leva a outra, além de escritor Matias é compositor. Em tributo ao ídolo idealizador da Sociedade Alternativa, o soteropolitano Raul Seixas, o médico compôs a música “Querido Maluco”, mas afirma não ter interesse em escrever um livro sobre o músico. “Raul é uma figura
extremamente misteriosa, ninguém sabe o que é verdade e o que não é.” Segundo Matias, o próprio cantor inventava histórias, uma delas inclusive teve grande repercussão no Brasil. Em 1989, durante entrevista ao programa Jô Soares Onze e Meia, do SBT, Raul Seixas afirmou que esteve com John Lennon em Nova York na época de seu exílio, porém, segundo Matias, isso não aconteceu.
A literatura, a música e a culinária possibilitam que o hematologista conviva com pessoas ligadas à arte, diferente da realidade de seu cotidiano nos hospitais. A gastronomia é mais uma das várias atividades de Kleber Matias. Indicado pelo Guia Quatro Rodas por três vezes consecutivas, o Othello Bistrô, restaurante do médico, escritor e compositor, é o único da culinária italiana de Recife que recebeu a indicação.
Não é de hoje que médicos dedicam suas horas vagas à literatura. Desde 1965, a Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames) congrega médicos de todo o País, inclusive Kleber Matias. A literatura nacional tem revelado grandes nomes. O também médico escritor Ronaldo Correia de Brito, amigo de Matias, ganhou em 2008 o 2º Prêmio São Paulo de Literatura, pelo romance “Galiléia”.
A Hematologia
O interesse pela hematologia surgiu após sua graduação em medicina pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 1977, época da descoberta do Transplante de Medula Óssea. Reportagem publicada em uma revista científica sobre a possibilidade de cura da leucemia por meio do procedimento intrigou o médico recém-formado e foi fundamental para a escolha de sua especialização.
Em 1999, Matias foi responsável pelo primeiro Transplante de Medula Óssea (TMO) do Norte-Nordeste do Brasil. Para ele, a realização do procedimento cirúrgico representa a conquista de um trabalho de 22 anos. “Comecei a fazer hematologia por causa do TMO”. Os livros, a música e a gerência de seu restaurante são passatempos. “A única coisa que levo a sério é a medicina”, revela.
Mulher Rendeira
Olê muié rendeira
Olê muié rendá
Tu me ensina a fazê renda
Que eu te ensino a namorá
Lampião desceu a serra
Deu um baile em Cajazeiras
Botou as moças donzelas
Pra cantá muié rendeira.
As moças de Vila Bela
Não têm mais ocupação
De que ficá na janela
Namorando Lampião.
Zé do Norte
Querido Maluco
Você que nasceu há dez mil anos atrás
Provou o vinagre e o vinho
Pousou na sopa do vizinho
E misturou a maluquez com a lucidez
Você que transou com
Deus e o Lobisomen
Preferiu ser uma metamorfose ambulante
Se não tinha colírio usava
óculos escuros
Você que desdisse o oposto
Do que havia dito antes
E acordou no dia em que a terra parou
Pegou na enxada, fez asseiro
Sem ter medo da chuva
Partiu no trem das 7 horas
Você foi a luz das estrelas
Cantou pra ninar sua morte
Morreu sem nem saber qual foi o mês
Você maluco beleza ficará
com toda a certeza
Por mais dez mil anos à frente
Na mente de quem for capaz.
Kleber Matias