Como a Sogesp recebeu a proposta de um projeto de lei voltado especificamente à facilitação da cesárea a pedido da própria paciente e sem indicação médica?
A Sogesp recebeu esse pedido com bastante preocupação, é muito importante que a gente deixe bem claro que nós não temos nada contra o exercício de autonomia da paciente, enfatizamos que precisamos trabalhar isso cada vez mais em relação ao atendimento médico. Mas, por outro lado, a forma como o projeto de lei está escrita preocupa muito, principalmente pelo fato de que ele leva para o momento do parto essa decisão. Todo o projeto de lei fala da parturiente, e a parturiente é a mulher em trabalho de parto. Então, nós vamos levar uma decisão que tem que ser tomada com muito esclarecimento, com muito cuidado, com muito pensamento para um momento em que a gestante já está em trabalho de parto. O que é inadequado quando falamos do exercício da autonomia.
Quais são os riscos da cesárea a pedido da paciente?
O risco é de aumento da taxa de cesárea de forma indiscriminada. As cesáreas de repetição estão relacionadas ao maior risco de hemorragias, e nós estamos passando neste momento, no estado de São Paulo, uma situação de bastante gravidade, porque temos presenciado o aumento da mortalidade materna. No ano de 2015, as hemorragias foram consideradas a primeira causa de mortalidade materna direta, relacionada à gestação no estado de São Paulo. Então, o que a gente vê, e nesse ponto voltado para a gestação de alto risco, existe um risco maior com a cesariana de repetição de acretismo placentário. Há o risco de que, em vez de diminuir a mortalidade, como muitas vezes é justificado no projeto, exista o contrário, o aumento da mortalidade materna.
Qual é a relação entre morte materna e a cesárea de repetição?
Quando falamos de cesárea de repetição é quando a paciente, por algum motivo, faz mais de uma cesárea. Como você tem cortes que acabam lesando a parede do útero, existe um risco maior de que, numa próxima gestação, essa placenta possa se inserir no local de cicatrização da cesariana, invadindo a parede uterina. É o que chamamos de acretismo placentário. É bastante claro que, se existe um aumento do número de vezes que as mulheres passam por cesarianas, aumenta a ocorrência do acretismo placentário. Essa placenta que invade a parede do útero aumenta o risco de hemorragia materna grave, aumenta o risco de morte materna e, muitas vezes, numa atenção adequada à gestante, você terá que fazer o diagnóstico do acretismo placentário durante o pré-natal e o parto terá que ser programado, planejado, com muito mais risco, com mais necessidade de equipamentos adequados para esta avaliação.
Existe algum tipo de benefício da opção da cesariana feita pela parturiente sem recomendação médica?
Em países que trabalham com a cesárea a pedido de uma forma adequada, citando a Inglaterra por exemplo, a cesárea a pedido é possível quando existe toda a fase de explicação para a gestante. Caso a gestante tenha medo de um parto normal, ela faz tratamento psicológico para que ela consiga lidar com o medo do parto normal e, caso nada disso resolva, e continue sendo inaceitável para a gestante o parto normal, nessa situação seria correto realizar a cesariana a pedido. Então, se você olhar na Inglaterra, a cesariana a pedido não chega a 5%. O que o Projeto de Lei propõe não é o que é descrito na literatura como uma cesariana a pedido, mas sim, que todo pedido de cesárea seja aceito e a qualquer momento. Acho que essa é a maior gravidade da situação, por isso a gente insiste muito que vai haver malefício para a saúde da gestante na aprovação dessa lei.
A pesquisa Nascer no Brasil, publicada pela Fundação Oswaldo Cruz, mostra que 70% das mulheres no nosso país inicia o pré-natal desejando o parto normal, mas mudam de ideia durante gestação. A que você credita a desconstrução desse desejo inicial?
Culturalmente existe uma ideia de que a cesariana é associada até a uma condição econômica melhor porque até a algum tempo diziam que se você pode pagar por uma cesariana, ela será feita. Existe uma conveniência no sistema hospitalar de que seja feita uma cesariana porque o tempo de utilização de uma sala de parto é menor. Passamos por uma escassez de anestesistas para cuidar da analgesia de parto e, hoje, temos uma escassez de boas histórias de que realmente foi bom para uma mulher ter um parto normal. É impossível não falar sobre a conveniência não só da paciente, como também a conveniência do médico, principalmente pela falta de remuneração que existe a atenção ao trabalho de parto. São poucos os planos de saúde que remuneram o acompanhamento do trabalho de parto, o que é remunerado com o mesmo valor de uma cesariana é o momento do parto. Não é aumentando as taxas de cesariana que nós vamos resolver os problemas da assistência obstétrica.
É correto afirmar que a aprovação do PL pode trazer consequências catastróficas para a organização do SUS?
O sistema teria que passar por uma reorganização. Mas o que a gente observa é que talvez isso acabe não levando o sistema a se reorganizar da forma correta, mas sim, levar a punições para o médico. Na própria lei está colocado que, caso o médico ache que não é possível atender o desejo da mãe, ele deve registrar isso num prontuário. Mas como fica a impossibilidade do médico de atender o desejo porque não há anestesista ou equipe médica suficiente para realizar aquele procedimento naquele momento? Outro ponto importante é o tempo de internação após a cesárea e se isso não irá sobrecarregar o SUS. Nós já tivemos no último ano um número importante de fechamento de leitos de maternidade, então, agora, se aumentar o tempo de internação de pacientes, existe uma possibilidade de que se tenha uma falta de leitos obstétricos no estado de São Paulo. Uma lei que pode ter um efeito tão grande na saúde pública não pode ser aprovada sem que todos esses impactos sejam analisados.
Quais são os riscos de um PL com esse teor ser aprovado sem base em evidências científicas e dados epidemiológicos?
Estamos passando por uma situação em que o mundo inteiro está se concentrando em redução de taxas de cesarianas, nós somos o segundo país com mais taxas de cesarianas e estamos trabalhando para que essas taxas sejam maiores ainda. Então, é um contrassenso se comparado ao mundo todo. Quando você justifica que o projeto de lei vai levar à redução de paralisia cerebral, não há evidência científica que suporte essa afirmação. E nós não podemos ter um PL que seja aprovado com base em experiências e opiniões pessoais. Se tratando de saúde, é muito grave que se tome uma decisão sem uma análise correta dos impactos, ou que tenhamos evidências científicas que embasem esses projetos de lei.
Em relação à classe médica, ela precisa ser mais ouvida quando se trata de saúde da mulher e da população em geral na propositura de leis.