O ambiente artístico brasileiro, a partir de Oswald de Andrade e seu projeto Antropofágico, esteve à procura de uma identidade que o fortalecesse contra o conservadorismo e o atraso, na corrida para alcançar os avanços das vanguardas europeias. Efetivada a profecia dos Modernos, a arte inserida na cultura global, chegou a vez de muitos jovens se unirem para questionar o que a história se encarregou de gerar até aqui. A partir do início dos anos 1990, houve o fortalecimento de coletivos artísticos – nome cunhado para designar a formação de grupos em torno de um ideal estético, que produzem e se articulam conjuntamente. A internet e o diálogo com a temática urbana são pontos de partida para as proposições estéticas desses grupos que usam a cidade e a rede para tecerem questionamentos sobre a sociedade e as instituições, além de contarem com boa dose de visibilidade em decorrência da web.
O crítico de arte e professor adjunto da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Felipe Scovino, analisa o fenômeno em Coletivos, publicado pela editora Circuito, em 2010. Para o crítico, os coletivos se situam em um tempo em que é essencial pensar alternativas de criação, reflexão e exposição de práticas artísticas.
“Cada coletivo funciona de forma autônoma em relação aos outros e, portanto, são práticas bem diferentes. Talvez a única coisa que os conecte sejam as ações periféricas a um esquema de arte já articulado”, explica Scovino. Essas ações podem ser facilmente identificadas no coletivo Grupo de Interferência Ambiental (GIA), baseado em Salvador, Bahia.
Composto por sete integrantes, entre artistas plásticos, designers, fotógrafos e arte educadores, promove pequenos gestos e intervenções na cidade por meio do humor, sem perder de vista o olhar crítico sobre o espaço público. “Trabalhamos muito com a estética do precário e do efêmero, porque conseguimos nos infiltrar melhor na dinâmica da cidade se usamos linguagens que lhe são próprias. Nossos materiais são muito baratos, de fácil manejo, e as ações acontecem muito rapidamente”, diz Ludmila Britto.
Em uma das intervenções, o GIA constrói um “Caramujo” – tenda amarela de plástico em locais de grande movimentação. Sem perceber, as pessoas se aglutinam embaixo da tenda em locais pouco prováveis: pontos de ônibus, abrigos de moradores de rua.
Para Scovino, o espaço público é muito eficaz dentro dessas práticas artísticas porque os cidadãos se veem envolvidos nesse processo. “Os coletivos surgem como uma opção de investigação e formação de público”, afirma. “É no encontro entre público e artistas que nascem a potência e a manutenção dos grupos.”
Produção independente
O GIA teve início em 2001 na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. “Como o acesso à arte costuma ser restritivo, queríamos retirá-la de locais a que poucos têm acesso e levar o questionamento sobre democratização para as ruas”, relata Ludmila.
Boa parte dos jovens não encontra espaço no ambiente formal de trabalho e soma forças para executar suas produções de maneira independente. “Procuramos trabalhar com materiais baratos, de fácil manejo, como plástico, lambe-lambe, papel. Custeamos a maioria das nossas atividades”, afirma a integrante do GIA. Muitos não produzem objetos, mas registros em vídeo ou fotografia das intervenções que, mais tarde, podem ser apropriados por instituições.
“Não trabalhamos em caráter anti-institucional. Levar nosso trabalho para dentro de centros culturais permite ampliar o diálogo. O único problema é que nós temos um modo de operação meio anárquico, a rua nos dá a sensação de que tudo é possível. Na instituição há regras claras”, diz Ludmila.
Para muitos pesquisadores que acompanham a atual produção cultural, embora a venda das obras não seja o principal na maioria dos casos, é quase impossível escapar do assédio do mercado, porque dele depende em grande parte a sobrevivência desses grupos.
“O mercado está por todos os lados, inclusive na rua. Deve-se tentar descobrir um modo de atuação que não vá contra o projeto de cada grupo. Não vejo uma oposição entre produção independente e mercado, mas é claro que há experiências que não são vendáveis”, afirma o curador independente Cauê Alves.
Outro coletivo que consegue transitar entre a esfera independente e mercadológica é o Base-V, na cidade de São Paulo. Formado por Danilo Oliveira, David Magila e Zansky, possui uma base colaborativa na internet em que recebe trabalhos de vários artistas gráficos de todo o mundo e publica os melhores na revista experimental Maguila.
Porém, o trabalho do grupo se expande para outros suportes, como as paredes desenhadas de várias unidades do Sesc São Paulo, exposições em galerias como a Choque Cultural e até mesmo a capa da Revista E deste mês, que foi especialmente ilustrada a seis mãos pelo Base-V. “Comparamos nossa produção com uma banda de jazz. Cada um tem sua habilidade e, a partir daí, vamos criando interferências no trabalho do outro de forma bem solta”, define Zansky.
A serigrafia é uma linguagem forte dentro do coletivo. Produzem artesanalmente e financiam do próprio bolso o Box – caixa de madeira com vinte e cinco serigrafias de vários artistas –, algo que fazem por prazer e convicção, sem interferência de patrocínios e incentivos externos.
Quem é o autor?
A discussão sobre autoria perpassa toda a história da arte e não costuma vir sem um debate acalorado por parte de artistas e críticos. A partir dos anos de 1960, alguns movimentos buscaram a dissolução da figura do artista envolto na aura do gênio solitário. Passaram a utilizar materiais do cotidiano em suas produções e a pensar na participação do público como elemento para a recepção artística.
A exemplo do Fluxus na Europa – movimento que aglutinou vários artistas, como Yoko Ono, em torno de atividades ligadas ao meio urbano e à contestação ao status da obra de arte – e de Hélio Oiticica (1937-1980), autor dos Parangolés, no Brasil, a arte foi cada vez mais sendo arregimentada por meio de redes, encontros, acontecimentos (happenings) que a aproximaram da vida e atenuaram disputas entre artistas e movimentos estéticos.
“O coletivo é uma forma de trabalhar o desapego, pode-se passar horas fazendo um desenho superelaborado, aí vem outro e apaga por cima. A gente acha legal a habilidade individual se perder para criar uma outra coisa, com uma identidade comum”, afirma Zansky, integrante do Base-V, que usa pseudônimo justamente para se distanciar da assinatura individual.
Assinar coletivamente passa a ser também uma atitude política, em que reivindicam posições menos tradicionais vinculadas ao objeto artístico. “Trabalhar em coletivo é quase tornar concreta uma dimensão utópica de certa ideologia”, teoriza o crítico Felipe Scovino.
O próprio conceito de coletividade pode reverberar para a sociedade no esforço da criação conjunta. “A pergunta do ‘como viver junto’ perpassa toda a convivência desses grupos e eles lançam a questão nas suas práticas, nos objetos, nas performances”, completa Scovino.
Mesmo abdicando de uma assinatura individual, os coletivos produzem uma marca – um lastro simbólico – para serem reconhecidos dentro de um sistema. Não deixam de se firmarem como grupo por meio de uma identidade visual. O coletivo de chipmusic Chippanze (ver boxe Sinergia de Acordes) transformou o site do grupo em plataforma independente para download.
Pode-se ouvir músicas produzidas por diversos coletivos, em um ambiente em que as questões da autoria e da distribuição independente confluem. A maior liberdade de atuação também faz com que esses grupos desenvolvam uma pesquisa experimental em novos suportes, já que não estão atrelados à pressão do mercado.
Desenvolver uma linguagem própria torna-se uma das preocupações centrais dos coletivos, caso da Galeria Experiência composta pelos artistas Davi Boarato, Juliana Nadin, Daniel Gutierrez, Diego Lajst e Ali Cameron.
Eles possuem trabalhos ligados à estética fílmica, em que mesclam fotografia e literatura.
Um passado não tão distante
O Brasil dos Modernistas, na década de 1920, voltava-se para o mundo, mas também para o seu próprio interior à procura de elementos que nos constituíssem como nação. De lá para cá, muito mudou nesse cenário e a mistura de influências externas vem em um ritmo crescente. Porém, o passado persiste para quem quiser entender os movimentos culturais do século 21.
Felipe Scovino escreve em seu livro que se pensarmos nos antecedentes do fenômeno “coletivo”, “podemos enumerar os compromissos estéticos que conectavam o chamado ‘grupo dos cinco’ – Anita Malfatti, Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral”.
O Grupo Rex reuniu, entre junho de 1966 e maio de 1967, Nelson Leirner, Geraldo de Barros, Wesley Duke Lee e os jovens na época Carlos Fajardo e José Resende em torno de um projeto artístico denominado Rex Gallery & Sons, espaço expositivo e ateliê dos artistas que usavam da blague, humor e ironia para combater a arte produzida na época.
O Manifesto da Poesia Pau-Brasil, publicado por Oswald de Andrade em 1924, serviu, e muito, aos Rex como elemento de paródia. E eles foram um dos grupos decisivos para que novamente se questionassem os caminhos artísticos produzidos nos anos de 1960. “O sistema de arte nos anos de 1960 não era muito diferente do que acontece hoje em dia, apesar da globalização que estamos vivendo.
Tanto artistas como galerias procuravam seguir as tendências comerciais. A abstração era o que vendia e qualquer nova experiência não tinha espaço na sociedade e subsequentemente no mercado”, afirma Nelson Leirner. Segundo o artista, a formação do grupo não se dava em torno de uma ideia estética comum – seus trabalhos seguiam pesquisas distintas –, mas sim no desejo de romper com cânones.
“O idealismo estava em alcançar um espaço com o trabalho que fazíamos. Vivíamos um momento de transição, na música, no teatro, na moda, que determinava uma nova atitude perante a vida, o mesmo espaço que a tecnologia ocupa hoje entre as novas gerações”, diz.
As ações do grupo estavam muito próximas do que chamamos hoje de micropolítica – e esse posicionamento é um dos principais legados daqueles artistas às novas gerações. “A aura que a arte carregava era de valores, isso sim precisava ser rompido. Precisávamos participar das mudanças que a sociedade se recusava a aceitar”, declara Leirner, em referência não só ao posicionamento artístico como também à ditadura militar vivida naquele momento.
O artista finaliza fazendo um balanço do status da arte e sua posição futura. “Era uma época de mitos. Quando eles passaram a não existir, toda a arte se equalizou”, sentencia. “Logo, a postura crítica também sai das mãos dos artistas.”
Vanguarda revisitada
Movimentos artísticos resultaram em desdobramentos que configuram a recente produção brasileira
Pau-Brasil “Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.” Ao publicar o Manifesto da Poesia Pau-Brasil no jornal Correio da Manhã em 18 de março de 1924, Oswald de Andrade (foto) alforriaria todos os artistas do futuro, prestando serviço à criatividade e liberdade.
A reunião de Antônio Alcântara Machado, Raul Bopp, Guilherme de Almeida e o próprio Oswald, entre diversos colaboradores, em torno da Revista de Antropofagia (1928-1929) foi dada, nas palavras da crítica literária Maria Eugênia Boaventura, como trabalho coletivo. “Essa tática resolveu, em parte, o problema dos pseudônimos e a complexidade da estrutura do periódico”, escreveu a autora em A Vanguarda Antropofágica (Editora Ática, 1985).
A publicação utilizava colagens, citações e paródias – elementos referentes às vanguardas europeias do início do século 20 – para criticar certos grupos da sociedade e a arte patrocinada por eles. O Movimento Antropofágico desencadeou mudanças profundas na literatura, nas artes plásticas e na música.
Grupo Rex Formado por Nelson Leirner, Geraldo de Barros e Wesley Duke Lee, buscou forças para vencer – nesses termos, já que anunciavam no jornal Rex Time: “É Guerra” – um sistema dominante de arte que dava, naquela época, pouca atenção aos jovens artistas e novas práticas.
“Nosso objetivo era fazer frente a grupos já formados e reconhecidos pela sociedade”, afirma Nelson Leirner. Especificamente, lembra o artista, à pintura abstracionista, que era forte tendência nos Estados Unidos. Oswald de Andrade e os antropofágicos também exerceram influência para os Rex. “Nós vivíamos em um país que nada tinha a ver com o que se fazia no primeiro mundo. Estávamos muito mais ligados a denunciar nossos dominantes e a instalação da ditadura”, diz Leirner.
Neoconcreto Hélio Oiticica foi capaz de tecer redes e relações com diversos movimentos artísticos desde os anos de 1950, ao participar do Neoconcretismo no Rio de Janeiro em resposta às propostas estéticas concretistas de São Paulo.
O Manifesto Neoconcreto reivindicava maior liberdade formal. Na exposição Opinião 65, realizada nos anos de 1960, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Oiticica levou amigos da escola de samba Mangueira, da qual era passista, que foram barrados na entrada. O artista defendeu a entrada dos integrantes e foi expulso do local. Fez um discurso denunciando as instituições da época como racistas e elitistas. Sua obra Tropicália iria inspirar Gilberto Gil, Torquato Neto e Caetano Veloso na criação do termo Tropicalismo – releitura pós-moderna do movimento dos anos de 1920.
Casa 7 O ateliê dos artistas Nuno Ramos (foto), Fábio Miguez, Rodrigo Andrade, Paulo Monteiro e Carlito Carvalhosa, unia o grupo em torno da pintura. Mais especificamente, do expressionismo abstrato em voga nos Estados Unidos com a obra de Philip Guston. Para o país, a junção do grupo representava um novo posicionamento crítico frente às discussões sobre arte.
“O mercado começava a dar passos mais fortes, a ditadura tinha acabado e havia uma vontade de reagir contra aquela poética ‘secreta’ das vanguardas clássicas”, explica Nuno Ramos. “Éramos mais mundanos, foi nesse clima geral que o grupo se formou.” Nuno afirma que o artista, naquele período, ainda vivia muito solitário, por isso os grupos foram importantes para fomentar debates.
“A falta de instituições, universidades e galerias que projetassem valores levava as pessoas a se unirem. Conversávamos e brigávamos como se ali houvesse um microssistema cultural”, diz. A boa acolhida da crítica fez com que os meninos da Casa 7 participassem, em 1985, da 18ª Bienal Internacional de São Paulo – ano em que o grupo se dissolveu. A partir de então, cada um desenvolveu linguagens bem distintas em carreiras consolidadas individualmente. “Acho que nos tornamos artistas bem mais fortes depois da experiência com a Casa 7”, conclui Nuno Ramos.
Sinergia de Acordes
Grupos se multiplicam em outros gêneros e têm na música a promessa de renovação
A junção de dez bandas de sopro em um coletivo de 120 artistas pode parecer incomum – e é. Mas a ideia deu tão certo que tem transformado o Movimento Elefantes em uma das apostas musicais da atualidade. Desde 2009, as bandas Projeto Coisa Fina, Banda Jazzco, Soundscape Big Band, Projeto Meretrio, Reteté Big Band, Comboio, Banda Urbana, Orquestra HeartBreakers, Big da Santa e Banda Savana resolveram se unir para promover maior impulso à música instrumental no país, que segundo Vinicius Pereira, integrante do coletivo, não tem visibilidade na mídia.
“Antes de criarmos o Elefantes, as bandas tocavam em bares pequenos, numa realidade difícil”, diz. A ideia partiu de um show em Caracas, Venezuela, com integrantes da La Movida Acustica Urbana. “Todos os shows estavam lotados. Aquele coletivo conseguia fazer circuitos nas casas noturnas e tinha público frequente. Quando voltei de lá, percebi que era possível viver de música instrumental. Era só unir os contatos, juntar o pessoal e nos fortalecer”, diz Vinicius, que toca contrabaixo acústico no Projeto Coisa Fina.
A união de forças deu certo. Na Virada Cultural, nos dias 16 e 17 de abril, o coletivo conseguiu um palco exclusivo no Coreto do Parque da Luz. E, em pleno carnaval, atraiu muita gente para vê-los tocar no Carnaval na Contramão, no Sesc Pinheiros. A força do Elefantes vem da colaboração entre os diversos músicos e as parcerias que vão sendo criadas ao longo do percurso. “Nosso trabalho não é independente, é dependente no sentido de que precisamos um do outro para existir como coletivo”, diz.
Todos os mais de cem integrantes ainda persistem em manter um selo próprio, sem a interferência de distribuidoras. “Pelo mercado tradicional, a nossa margem de lucro seria menor. Quando nós mesmos fazemos a gestão de tudo, as regras são claras.” O Movimento Elefantes possui um “DVDÊ” e um “CDÊ” (assim mesmo a grafia) lançados em que a regra é: ouça, copie e passe adiante.
Frente à diversidade musical, o Chippanze figura como outra aposta coletiva para um público atento às novas tecnologias. André ZP, Eduardo Perdido e Eduardo Melo assumem os nomes de Pulselooper, Ghouls’n Eggs e Droid-On na composição de chipmusic – cuja origem são os sons produzidos por placas e hardware de videogames.
A tendência vem de fora, mas no Brasil o coletivo – que também tem como integrante o VJ e designer Rafael Nascimento (Escaphandro) – faz sucesso na inusitada mistura de ritmos e é cotado para shows e oficinas em diversas regiões do estado. “Já temos shows agendados no Sesc São José dos Campos, Sesc Santo André, Sesc Taubaté.
Sentimos o interesse do público, é muito difícil o show não vir acompanhado de oficinas”, diz André ZP, que esteve junto com o coletivo na Virada Cultural do Sesc Belenzinho, no dia 16 de abril. O movimento existe há dez anos na Europa, e a cena da chipmusic é forte nos Estados Unidos e Japão. “Esse tipo de música acaba se conectando com a música pop, com o hip hop, o tecno. No exterior a remixagem com esses estilos musicais é forte”, afirma André. Por aqui, a novidade ganha cada vez mais adeptos.