A cena continua nítida na lembrança de todos: no ano passado, justamente no primeiro dia em que o elenco de Rock in Rio – O Musical se reuniu com o diretor João Fonseca e o autor Rodrigo Nogueira, todos ouviram um comentário que provocou um frio na espinha: "A obra ainda não está pronta, vamos construí-la juntos", disse Fonseca. O temor era justificável, pois se tratava de contar a história do maior festival de rock organizado no Brasil, cuja primeira edição aconteceu em 1985, quando ainda pairava a sombra da ditadura militar.
O esforço, no entanto, foi compensador – Rock in Rio – O Musical estreia na sexta-feira 07/06, no Teatro Alfa, depois de cumprir uma temporada de sucesso na Cidade das Artes, do Rio. Produzido pela Aventura Entretenimento, que investiu R$ 12 milhões, o espetáculo nasceu a partir do convite do empresário Roberto Medina, mentor e organizador do grande evento musical. O desafio da equipe criativa era relembrar a história sem ser didático, apresentar as canções sem parecer um show.
A eficiência da dramaturgia de Rodrigo Nogueira não apenas contornou aqueles obstáculos como quebrou o tabu sobre a impossibilidade de se realizar montagens dessa envergadura no País a partir de textos nacionais. "O sucesso artístico do musical nos incentivou a concentrar nossos próximos investimentos em trabalho genuinamente brasileiros", conta Luiz Calainho, sócio-diretor da Aventura ao lado de Aniela Jordan e Fernando Campos.
Assim, até 2015, a empresa já acerta a produção de três musicais baseados em figuras e produtos de sucesso da MPB, televisão e cinema. O primeiro será Elis Regina – A Musical, que estreia em outubro, com dramaturgia de Nelson Motta; três meses depois, será a vez da versão teatral do filme Se Eu Fosse Você, com direção de Daniel Filho. E, enquanto isso, Pedro Bial vai preparar, para 2015, um musical sobre Chacrinha, o velho guerreiro.
A incomunicabilidade e a abertura política são os dois pilares da história de Rock in Rio – O Musical. A trama acompanha a trajetória de superação de Sofia (Yasmin Gomlevsky, de O Diário de Anne Frank) e Alef (Hugo Bonemer, de Hair). Enquanto a menina, filha do organizador do maior festival de rock do mundo, não suporta ouvir música, o rapaz, mudo depois de sofrer um trauma familiar, vive em um mundo particular, que expressa justamente pelas canções. "Tive o cuidado de não fazer nenhuma localização geográfica ou temporal, o que nos obrigaria a contar a história seguindo as datas", conta o autor Rodrigo Nogueira.
A decisão revelou-se sábia, pois, com isso, o drama do casal torna-se mais universal e, principalmente, o espetáculo consegue empregar canções de todas as edições do Rock in Rio sem se prender à ordem do tempo. E o trabalho de seleção não foi fácil – entre mais de 600 músicas, cerca de 50 foram garimpadas, como Pro Dia Nascer Feliz, de Cazuza, Freedom, de George Michael, Marvin, dos Titãs, Fear of the Dark, do Iron Maiden, entre outras, em versões originais e vertidas para o português pelo próprio autor. "No começo, relutei com a ideia de traduzir, pois lidava com verdadeiras joias do rock, mas o João (Fonseca) me fez entender que as letras auxiliariam para contar a história", disse Nogueira.
O recurso provocou surpresas, uma vez que determinadas canções ganharam nova conotação ao serem inseridas na trama. É o caso de Poeira, hit dançante de Ivete Sangalo que, ao ser cantada por Lucinha Lins, que vive a mãe de Alef, recebe uma belíssima carga de dramaticidade.
No elenco de 25 atores, Lucinha e Guilherme Leme, que interpreta o pai de Sofia, são os únicos veteranos. "Mas não houve desequilíbrio de gerações, pois todos aprendemos juntos durante o processo criativo", conta a atriz, que travou um trabalho particular para compor Glória, a mãe de Alef. "Como ele decidiu não mais falar a partir dos 7 anos, quando concluiu que o desaparecimento do pai durante a ditadura foi porque ele falou demais, Hugo não dizia uma só palavra, mesmo durante os ensaios", relembra ela. "Com o tempo, isso começou a me desesperar, pois não havia nenhuma relação entre a gente – ele não me respondia nem com um olhar."
Bonemer entendeu o incômodo de Lucinha, mas, como ainda desconhecia o rumo de seu personagem, não sabia como interagir. "João não queria uma interpretação caricatural, assim, os sentimentos de Alef são traduzidos pelo corpo", conta o ator. "Ele pula quando está feliz e corre nos momentos tensos."
Também cuidadosa foi Yasmin Gomlevsky ao construir Sofia, menina cuja retórica impressiona, mas que, no fundo, oculta sua decepção com o desaparecimento da mãe. "Tentei evitar o risco de ser uma personagem unilateral, o que se tornaria um clichê", conta. "É muito fácil não gostar de Sofia, mas ela tem um trauma com a música por acreditar que sua mãe sumiu por conta disso."
Alef e Sofia logo percebem que se completam. "Quando se conhecem, um faz o outro pensar sobre a própria situação", comenta Yasmin, cuja interpretação feroz, aliada ao potente tom de voz, a transforma na parceira ideal para Bonemer, ator que transforma a introspecção em grande momento teatral.
Se o primeiro ato se concentra na apresentação dos personagens e seu envolvimento com o momento político da época, o segundo detalha as dificuldades enfrentadas pelo empresário Roberto Medina em organizar o primeiro Rock in Rio, em 1985. Os especialistas vão identificar cenas memoráveis, como a de um guitarrista andando nu. Já os novatos perceberão o conceito do festival e do musical: a ação transformadora das canções. Especialmente as belas.