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Caminhar pelo espaço urbano pode transformar a relação com o ambiente

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07/04/2011 | Notícia Simesp

Caminhar pelo espaço urbano pode transformar a relação com o ambiente

Vivenciar a cidade, ater-se aos seus caminhos, confundir-se, perder-se por entre vielas e escadarias nos coloca em contato com a dimensão histórica e social do espaço urbano. Seria o primeiro passo para reconhecê-la como nossa, como coisa pública. Os gregos foram os primeiros a associar o ato de caminhar com o aprendizado, no momento em que Aristóteles inaugurou em Atenas sua escola peripatética (aqueles que passeiam, em grego). O filósofo dava aulas a seus discípulos enquanto caminhavam ao redor do Liceu, no século 336 a.C.

Atualmente, em São Paulo, alguns grupos saem em expedições pelo Centro Histórico a fim de conhecer melhor a cidade e resgatar locais do imaginário paulistano, caso do grupo de Caminhada Noturna pelo Centro. Agrega cerca de 30 pessoas entre curiosos, arquitetos, fotógrafos e turistas, sempre às quintas-feiras, para passeios ao redor do perímetro do Teatro Municipal, Vale do Anhangabaú e Praça da República. A iniciativa surge como parte integrante do movimento Associação Viva o Centro, que há 20 anos trabalha pela revitalização da região. “Os 450 anos da cidade de São Paulo foram um marco muito importante no despertar do paulistano pelo desejo de conhecer a cidade”, afirma Laércio Cardoso, guia turístico da Caminhada Noturna.

Em uma noite quente de fevereiro, às oito da noite, Laércio preparava o roteiro para as pessoas que iam chegando informalmente na calçada, em frente às escadarias do Teatro Municipal, vestindo os famosos coletes amarelos prontos para cumprirem o percurso do que chamara de “São Paulo: Museu a Céu Aberto”. O deslocamento se deu rumo ao Vale do Anhangabaú – local que preserva um conjunto de 12 esculturas de bronze e mármore em homenagem a Carlos Gomes, do escultor italiano Luigi Brizzolara.

Passando, também, pelo Largo da Misericórdia, avista-se o primeiro monumento de São Paulo, Obelisco do Piques, construído em 1814. Para Carlos Beutel, um dos organizadores da Caminhada Noturna – que ocorre desde 2005 – o passeio pelo entorno proporciona um despertar às questões que precisam ser discutidas com os órgãos públicos. “Aquele que cuidará ?melhor da cidade será o que a conhecer melhor, será o que exigirá mais das autoridades”, afirma.

O evento alcança a marca das 270 caminhadas, com o recorde de público no dia 25 de janeiro, em comemoração aos 457 anos de São Paulo. Reuniram-se à meia-noite cerca de 350 pessoas em “Caça aos fantasmas do Centro”, visitando endereços “assombrados”, tais como teatros e edifícios abandonados. A caminhada teve o apoio da Guarda Civil Metropolitana.

Urbanismo e cidadania

A figura do flâneur, imortalizada por Charles Baudelaire, preconizava os avanços industriais e a nova configuração de Paris do século XIX. O novo herói se encontrava nas cidades, era fruto do progresso urbano. Sobreviver nas cidades era o novo fato histórico, influência que se manteve na literatura e escritos de muitos outros autores de séculos vindouros.

No final dos anos de 1950, um grupo de artistas e pensadores se uniu no que se configurou a Internacional Situacionista, que teve na figura de Guy Debord um ícone que buscava novas formas de pensar a cidade por meio do nomadismo, do caminhar à deriva para descobrir novos espaços de territorialidade que contrastassem com o ideário moderno de cidade planejada e bem definida.

A cidade pós-industrial, em que a arquitetura começava a mostrar sinais de fragmentação e diferença, era o lugar ideal para os situacionistas traçarem novos estudos sobre urbanismo e ocupação de espaço. “O interesse dos situacionistas pelas questões urbanas foi uma consequência da importância dada por estes ao meio urbano como terreno de ação, de produção de novas formas de intervenção e de luta contra a monotonia”, escreve Paola Berenstein Jacques no livro Apologia da Deriva – Escritos Situacionistas sobre a Cidade (Casa da Palavra, 2003).

Para pôr em prática essas questões, as pessoas deveriam se apropriar dos espaços públicos, algo que, na opinião do professor de urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Jorge Bassani, o paulistano sente dificuldade em fazer. “Temos de pensar o que é espaço público. As pessoas acham que apenas as áreas nobres são bem abastecidas por tudo o que é bom”, explica Bassani. “Essa é uma contradição, porque ?temos um maior aproveitamento do espaço que se denomina público em áreas centrais, mas elas estão degradadas e as pessoas frequentam pouco.”

Rumo à revitalização

Há alguns anos, a revitalização da Luz tem sido assunto de debate entre a esfera pública e a privada, com a presença de equipamentos culturais importantes como a Sala São Paulo, a Pinacoteca e o Museu da Língua Portuguesa. Aos poucos, o paulistano é chamado de volta às regiões centrais.

“Uma das maiores expressões da cidadania, hoje, é ter vida de pedestre. A relação do caminhante com a cidade é de outra natureza. A amplitude do olhar, a oportunidade de se concentrar no entorno estabelece uma outra relação de afetividade com a cidade”, declara o consultor cultural Yacoff Sarkovas, que ficou surpreso ao deixar, pela primeira vez, o carro em casa para atravessar a Nove de Julho em direção ao Vale do Anhangabaú a pé.

Em sua opinião, o itinerário mais importante se dá pela Bela Vista. “Um lugar que entrou num processo de degradação ainda sem sinais de recuperação. O bairro possui lugares interessantes, casarões, escadarias que tiram o pedestre de um plano de visão e o joga em outro. Do alto da Rua dos Ingleses, naquela atmosfera de Jardins, descemos uma escada e chegamos ao coração do Bixiga, na Treze de Maio.

Só um pedestre pode ver isso”, acrescenta o consultor. Para Sarkovas, o conhecimento desses locais geraria maior interesse em discutir o processo de recuperação de áreas vitais. Caso da Bela Vista, polo teatral até meados do século passado.

Mauro Calliari, consultor e professor da Fundação Getulio Vargas, é outro cidadão-andarilho consciente sobre as questões urbanas de São Paulo. Em suas andanças, desloca-se do Alto de Pinheiros e chega até o Horto Florestal, ou mesmo o Tatuapé. O caminhar fez com que se interessasse por urbanismo e se inscreveu em um curso na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “Gosto de descobrir novos lugares em regiões improváveis. Um espaço que me chamou a atenção foi o Parque da Juventude, antigo Complexo do Carandiru, lá tem uma biblioteca muito boa”, diz.

Um novo olhar

A imagem das escadarias é um bom exemplo da cidade que convida ao caminhar. Barcelona, na Espanha, e Roma, na Itália, são cidades não planejadas, em que os habitantes possuem o hábito de sair sem direção, guiados apenas pela curiosidade de entrever cada ruela sinuosa à frente. Essas cidades traduzem bem a noção de “deriva”, expressão usada pelos situacionistas. “A cidade planejada, com traçado urbano calculado, plana, não permite ao caminhante nenhuma surpresa”, garante Jorge Bassani, da FAU-USP. “São Paulo, pela sua configuração, é um exemplo de cidade a ser explorada pelo caminhante.”

O que impede muitos de se aventurarem são os problemas estruturais – violência, culto ao automóvel e falta de iluminação pública para segurança do pedestre, por exemplo. “Toda a iluminação é voltada para o trajeto dos carros. A calçada pega uma rebarba da luz”, alerta Sarkovas. Para contrapor essa visão, recentemente foi inaugurada nova iluminação na Avenida Paulista. “A Paulista é o lugar de excelência para o pedestre, possibilita conviver com a diversidade com seu comércio, cinemas, cafés e museus”, completa.

Outro marco de São Paulo é o Parque do Ipiranga. “Além do museu, existe ali um conjunto paisagístico, ?arquitetônico e escultórico de muita grandeza. Em frente ao museu, há um jardim francês com chafariz, piso em mosaico português e, em seguida, vemos o Monumento à Independência, do escultor italiano Ettore Ximenes”, informa o historiador e crítico de arte João Spinelli. Segundo ele, São Paulo possui vários pontos em que arte dialoga com marcos da história da cidade, feita para interferir no traçado urbano e na relação do pedestre com os locais de passagem. Arte pública sempre procurou relacionar o espaço geográfico com o passado deste local.

Existe uma relação direta da arte com a arquitetura, o urbanismo e o paisagismo. “As pessoas passam rapidamente pelo local de ônibus, carro e a obra está lá em estado de impermanência. Vemos em flash, são poucas as pessoas que caminham em seu entorno para observá-las melhor”, diz Spinelli. Na Avenida Paulista, muitos passam sem saber que ali em frente ao Banco Safra, na esquina com a Rua Augusta, o jardim foi projetado por Burle Marx. Assim como a calçada de outra agência do banco, na Alameda Campinas, possui desenhos originais do importante paisagista. “A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) também mantém um painel original feito por Burle Marx em concreto, ali na Alameda Santos, nos fundos do teatro”, completa.

Para Jorge Bassani, o simbólico adquire importância crucial no espaço urbano, mesmo que o objeto – um muro grafitado, uma intervenção em uma praça – não possua caráter funcional. “A cidade precisa desse confronto com o ambiente. Isso se traduz em como a ideia do caminhar hoje é levada em conta no urbanismo contemporâneo”, esclarece. “O caminhar é proposto como solução técnica, pois andando você entra em contato com uma série de acontecimentos, podendo criar afetividade pelos espaços.”