Thereza não é uma aventureira, mas, assim como o navegador Vasco da Gama, já enfrentou uma verdadeira odisseia para chegar a um lugar, como é contado em Os Lusíadas, obra-prima de Luis de Camões (1524-1580). Ela, que também não se parece com Lóri, personagem de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector (1920-1977), dividiu com a protagonista as dúvidas do primeiro amor.
Agora, sua história é apresentada bem parecida com a de outras meninas reais em Tudo que É Sólido Pode Derreter (Leya, R$ 39,90/ 464 páginas), de Rafael Gomes, 28 anos. No livro, Thereza é uma garota que passa por situações típicas de uma adolescente, como o primeiro namorado, brigas com os pais e ainda a perda de um parente querido.
Tudo isso, porém, fica muito mais interessante quando ela se deixa influenciar por tudo que lê e acaba vivendo situações parecidas com as dos livros, descobrindo que a literatura tem, sim, muito mais a ver com a sua vida do que imaginava.
"Thereza se envolve com tudo que ela lê e aprende muita coisa. A adolescência dela é contada através disso, dessa associação com os livros. E, de uma certa forma, isso acontece na vida real também. Quando a gente lê, a gente vê traduzido ali os nossos sentimentos. É incrível!”, explica Rafael , com a empolgação de um leitor.
Descobertas
Assim, em cada capítulo do livro, uma nova obra clássica é apresentada e Thereza vive uma história diferente. Ao todo, são 13 capítulos, que vão dos Sermões do padre Antonio Vieira (1608-1697) a Ismália, de Alphonsus de Guimarães (1870-1921); de Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), a O Guardador de Rebanhos, de Fernando Pessoa (1888- 1935). A história ainda passa por peças de teatro, como Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente (1465-1536), e Quem Casa Quer Casa, de Martins Pena (1815-1848).
A maioria é de livros obrigatórios no ensino médio. “O objetivo era mesmo dialogar com esse público. Por isso peguei como base a literatura clássica que é pedida na escola. Até para mostrar que eles não são chatos nem difíceis, como muitos pensam”, explica Rafael, que descobriu a paixão pela literatura na adolescência.
“Eu costumo dizer que eu sou a Thereza. Fui um adolescente que sempre leu muito. Descobria um autor, gostava do livro e ia atrás de outros livros dele. Lembro de ter descoberto assim Machado de Assis e Jane Austen, por exemplo”, relembra. “Só nunca passei por situações tão semelhantes a dos livros, como acontece com ela, embora tenha ficado bem impressionado quando li Hamlet, de Shaskepeare (1564- 1616), aos 14 anos”, conclui.
Hamlet E foi justamente a partir da leitura do clássico do inglês William Shaskepeare que Rafael criou Thereza. Na época, ela ainda era protagonista de um curta- metragem, protagonizado por Mayara Constantino, que futuramente renderia uma série de TV e, logo depois, este livro.
“Eu tinha que criar alguma relação entre o curta e o Festival de Cultura Inglesa. Então, fiz tudo em cima de Hamlet e imaginei Tudo que É Sólido Pode Derreter, já com esse nome. E a resposta foi muito feliz. O filme passou a circular por escolas para tentar aproximar os jovens da literatura. E descobri que ele tinha um formato propício para ser serializado”, explica Rafael, cineasta por formação.
É dele – junto com Esmir Filho e Mariana Bastos – o curta Tapa na Pantera (2006), sobre uma senhora de 70 anos falando sobre os benefícios da maconha, que virou hit no Youtube.
"Peguei como base a literatura clássica pedida na escola. Até para mostrar que os autores não são chatos, nem difíceis, como muitos pensam", Rafael Gomes, autor do livro Tudo Que é Sólido Pode Derreter
Televisão
Foi então que Rafael recebeu o convite da TV Cultura para transformar o curta na série televisiva, novamente com Mayara Constantino. “Não foi planejado. Fiz o curta sem calcular que viraria um seriado, e nem que viraria livro. Tudo foi dando certo aos poucos”.
A primeira temporada foi exibida de abril a agosto de 2009 e foi sucesso na televisão e na internet, onde os capítulos ainda podem ser assistidos na íntegra e gratuitamente no site da emissora (www.tvcultura.com.br/ tudooqueesolido), ou adquiridos em um boxe com 4 DVDs. A segunda temporada está prevista para ser lançada ainda este ano.
A partir desse sucesso, Rafael foi convidado para um novo desafio: publicar um livro sobre o seriado, que também pode se tornar uma série. “Eu sou um cineasta que está escritor. Na verdade, nunca pensei nisso. Mais fico feliz por ter tido a sorte de fazer o contrário do que os cineastas fazem, que é resumir a obra para caber no filme. No livro, eu tive que aumentar tudo e criar mais histórias. Foi um desafio”, explica.
Trecho do livro
No dia seguinte, levantei uma hora antes do despertador tocar e arrumei todo meu quarto. No livro a Lóri dorme com o Ulisses, mas eu não ia dormir com o João. Ainda estou me preparando para isso. Antes de entrar no banho, antes que minha mãe acordasse, antes que o mundo voltasse a girar sua órbita corriqueira, eu acordei a fita VHS antiga, que dormia dentro do videocassete.
Minha busca não era por Clarice, mas por rever a “eu” que ontem me intrigava e que em tão pouco tempo eu já era capaz de entender melhor. Ali, pequena, no alvorecer da infância, as imagens desbotadas me mostravam abraçadas com minha mãe, exatamente como eu estaria para sempre e de forma indissolúvel atada a Lóri.
Iniciei na água do chuveiro o resto dos meus dias, pensando que tinha entendido por que o livro começava com uma vírgula e terminava com dois pontos. É que aquilo era só um pedacinho da vida. A gente tinha a eternidade antes e depois. Esse livro não era só sobre esperar o momento de se entregar pro amor e por isso ele também tinha aprendizagem no nome. Era sobre aprender a ser quem a gente é. Sobre nascer e renascer, dentro da gente mesmo.